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A trilha sonora do que vem por aí

Uma noite fria de sexta-feira, boas companhias, vinho rolando, cabeça em contato com coração. O espaço é lindo, tem uma arquitetura que possibilita pensar. Chegamos atrasados, afinal jovens que somos inventamos uma certa travessura adulta para se embolar. Mas no tempo certo para desfrutar de uma comidinha bem feita e trocar beijos com o casal de amigos.


A tal da sexta fria estava quente agora. E foi só queimando mais, afinal fomos ao encontro da arte e ela tem essa capacidade incrível de nos fazer sentir.


O espetáculo me elevou. Numa simplicidade de pés no chão, Beatriz e Moreno, com uma banda impecável – a ponto de fazer chorar, pegaram com as mãos os corações daquela plateia sentada vislumbrada com o futuro.


Engraçado é que Clarice Clarão – nome do disco e responsável por me levar até o Sesc naquela sexta gelada, traz a figura intrínseca do que pra mim é a literatura profunda, como uma escorpiana em raiz, chamada Clarice Lispector. É a magia do fabuloso. Esta magia é o que somos em conteúdo. O que escreveram sobre aquilo que não devemos ser, mas que passa pela carne até que sejamos. Você me acompanha?

Pois eu me acompanhei inteira naquele espetáculo promovido por Beatriz Azevedo e Moreno Veloso no teatro do Sesc Campinas. Lá eu descobri que aquele era o primeiro show da banda, fiquei surpresa, pois afinal eles estavam eram entrosados a ponto de me passarem a real sensação de família italiana. Aquele piano... suspirante!


Clarice é o tapete. Daqueles persas bem ricos, finos, elegantes, caros, raros. Na poesia desconstruída desta mulher que me bagunça toda e eu amo, eles construíram a leveza. Com um grau de sensatez palpável. Eu senti cada nota acompanhada de palavras. As poesias recitadas, a voz bêbada de Bethânia, o animalesco sorriso de canto de boca desconcertante de Moreno, os dedos longos do pianista (sim, já falei dele antes), a voz real que Beatriz encarna em pele. Luzes conduzem.


Lembrei da vida toda. Lembrei que a vida toda Clarice sempre sussurrou gritado aos meus ouvidos. Lembrei que em tempos de vida na roça a salvação era encontrar baratas para fugir da solidão. Clarice me pegou com a mão.


E ali, me coloquei toda a disposição da menina boba que me tornou mulher. Uma bobagem danada. Daquelas que só os baianos sabem mesmo o real sentido. Afinal os pés no chão só são vividos quando na mente bate esse conhecido coração. Quero dizer, meu amor, que naquela sexta-feira faziam trinta graus dentro de um corpo de trinta e tantos anos.


E a vida que tratei há pouco ter sido resgatada com cada linha de Lispector, cantada e tocada na bela obra Clarice Clarão, é síntese. Aquele momento, aquele lapso, aquele suspiro. Aquela identificação profunda. Não precisa de drogas para da pele sair. É ligar os fios condutores da existência entre passado e futuro. Naquela sala teatral, o espetáculo cantou a trilha sonora do que vem aí.



A CAPA: a ilustração da capa do álbum é uma criação da filósofa Marcia Tiburi

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1 Comment


michelemerlucci
michelemerlucci
Aug 18, 2022

Revivi aquela noite, mas através dos seus olhos mergulhei num lugar novo e ainda mais belo. Obrigada por isso, deusa. 🌺

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